sábado, 6 de março de 2010

Personagens queridos da nossa infância

Por toda nossa infância, essa turma encheu nossos olhos e ouvidos com cenas fárcicas, absurdas e violentas, pontuadas por falas cínicas e até mesmo assustadoras, arrancando de nossa ingenuidade e recôndita torpeza gargalhadas do mais puro deleite. Por tudo isso, os personagens dos cartoons clássicos da TV merecem uma modesta homenagem. Quando foram criados por gênios da animação, hoje muito distantes, o mundo se importava pouco ou nada em ser politicamente correto. Para muitos hoje o riso deve sair meio contido diante dos horrores que saltam da tela, mas a qualidade deles é inegável. Contemplemos aqui um breve perfil de alguns desses irreverentes personagens do humor à moda antiga.

1. Tom e Jerry


Muito além da velha idéia de que gato e rato não se gostam, esses dois representam o conflito de poder. Dotados cada um de vantagens e desvantagens no ambiente em que vivem, gato e rato querem passar um por cima do outro, com estilo e humilhação, a fim de gozar dos privilégios disponíveis no pedaço, sejam eles ter acesso irrestrito à geladeira ou ter boa reputação com o dono da casa. Tipicamente, também fazem jus à idéia de que nos subúrbios americanos pouco há pra fazer exceto encher o saco um do outro em rixas menores, mas que são levadas muito a sério. Pode-se ver isso nos episódios que começam com Tom brincando calmamente com Jerry, fingindo que o deixa fugir mas logo capturando-o de novo entre os dedos. Um clássico da pancadaria com clichês consagrados, como a pá e o varredor de grama caídos no chão pro coitado levar porrada de frente e de trás.

2. Pernalonga e Patolino (Bugs Bunny, Daffy Duck)


Epítome maior do cinismo, esse coelho pernalta é quase um dândi em seu estilo performático e ar superior de que o problema não é com ele. Esperto e de longe favorecido pelos roteiristas, Pernalonga leva seus antagonistas à loucura ao superá-los sem transparecer o menor esforço. Dois deles são, é claro, Patolino, o eterno boi de piranha, fracassado que tenta a qualquer custo "sobreastuciar" o rival orelhudo, quase sempre sem sucesso, e o clássico redneck Eufrasino Puxa-Briga (Sam Yosemite), cuja habilidade no gatilho não lhe serve para pregar o coelho. Pernalonga é, pois, aquela figura que você adora, dependendo da sua natureza, ou mais provavelmente quer esganar, já que o que ele faz com os outros e deixa de sofrer deles força a amizade até mesmo nos desenhos mais absurdos. Um momento notável, entre tantos, é quando, ao encarnar um pianista, ele puxa um revólver e sem o menor pensamento atira num cara na audiência que não para de tossir. Logo depois, ele interrompe o concerto no meio e atende o telefone: "Que é que há, velhinho? Quem? Franz Liszt? Não, nunca ouvi falar. Foi engano." É claro que foi.

3. Frangolino e Barny (Foghorn Leghorn) 


Eis um dos meus favoritos. Direto ao ponto, sem muitas sofisticações de trama, alusões, trilha sonora ou mesmo diálogo, ao contrário do Pernalonga, Frangolino é farsa pura, porrada do começo ao fim. Ainda bem que Robert McKimson empregou sua criatividade em desenhos e não em salas de tortura do exército americano, ou muito prisioneiro teria comido o pão que o diabo amassou. O personagem homônimo usa seu ócio exclusivamente pra pensar em formas de avacalhar com seu vizinho de fazenda, o cachorro Barny, nome adotado em português para o original Barnyard Dawg (grafia que ilustra o sotaque interiorano carregado do Frangolino). Na cena mais clássica, Frangolino puxa o rabo do inimigo adormecido dentro da casinha, espanca o traseiro dele com uma ripa e sai correndo até onde a corda na goela do cão não vai mais, ao que este solta um ganido de dor com a língua de fora, que o galo por fim pega, estica e cobre com uma mão de tinta. A risada sai culposa, mas fazer o que?
 
4. Pica Pau (Woody Woodpecker)


Desonesto, sacana, guloso, mulherengo, ganancioso, preguiçoso, cruel etc., não há quem supere o velho anticristo Pica Pau. Eis a imagem de todos os defeitos possíveis num só corpo e espírito. Vermelho, branco e azul, este personagem é uma alusão atrevidíssima à própria personalidade norte-americana, àquilo que é a dominante na mentalidade do povo daquele país, o individualismo, obviamente exagerado às últimas consequências no desenho. Analisado em relação ao seu pano de fundo, Pica Pau é o malandro americano, incorporando muito do ceticismo, cinismo e decadência do cidadão urbano que sofria as agruras da crise econômica, nos tempos da máfia, do blues e do jazz. Grosso modo, um "Zé Carioca gringo" sem a suposta alegria do samba e das praias tropicais. Em alguns episódios, a criatura de Walter Lantz (que teve a centelha após um espécime tê-lo pertubardo em sua lua de mel) também encorpora outra figura pela qual o imaginário ficcional americano sempre nutriu grande obsessão, o psicopata. Sofisticado até hoje, o desenho esbanja tiradas verbais, alusões variadas - como a da foto acima - e elementos metalinguísitcos e teatrais genialmente perturbadores, além de retratar os Estados Unidos. Como exemplo da incorreção política, temos o índio estereotipado, burro e ingênuo. Como o colega Pernalonga, um personagem pra se amar ou odiar. Figurantes no desenho incluem Zé Jacaré e Zeca Urubu, ambos parceiros de podridão moral, além de Meaney Ranheta e Leôncio, figuras autoritárias, humanos narigudos com formas animalescas e atitude moralista que são totalmente esculachados pelo pássaro demoníaco. Não deixe de conferir o episódio em que ele tenta descolar umas pipoquinhas duma velhinha no Central Park.

Há algo nesses desenhos que expõe a natureza contraditória do humor. Frutos da chamada Era de Ouro da animação americana, de fins da década de 20 a fins da de 60, os tantos cartoons da época eram e ainda são espelhos distorcidos pelos quais criticamos e ao mesmo tempo reafirmamos valores contestáveis. Perto desses, os atuais bonitinhos e politicamente corretos da Cartoon Network e outros são realmente brincadeira de criança (mas também são excelentes). Subversão é a palavra, mas eficazmente maquiada pela gargalhada. Irônico que a maioria de nós os tenha conhecido na infância. O mundo mudou, mas eles continuam aí, ainda que repaginados, mais redondinhos, bonitinhos, modernos, ou representados por seus filhotes, como Tom e Jerry. Testemunhas dos tempos e da incorrigível natureza humana.

3 comentários:

  1. grandes desenhos. as trilhas de "Tom e Jerry" são sensacionais. realmente, se fossem feitos hoje, não seriam exibidos, devido ao conteúdo "subversivo". A democracia é uma benção!!

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  2. Nunca sei se essa sua frase é sarcástica ou não.

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  3. Quero dizer que a liberdade abre caminho para todos e isto nem sempre é bom.

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