sábado, 8 de maio de 2010

Globalização e Alienação - internet e interlíngua

Se por acaso você não sabe, sou professor de inglês e estudante de literaturas nessa língua. Minha área de atuação me faz estar em contato com a "língua de Shakespeare" 7 dias por semana, no mínimo 12 horas por dia. Afinal de contas, a "língua de Shakespeare" é hoje o idioma da tecnologia, dos negócios, da academia e do entretenimento. Ensinar inglês é lidar diariamente com as necessidades e expectativas de pessoas as mais diferentes que aspiram para si mesmas a um pouco da minha rica vivência com a lingua franca da atualidade. Para mim uma experiência privilegiada, mas ao mesmo tempo alienante, da qual quero falar um pouquinho.

Costumo dizer aos meus alunos, principalmente aos iniciantes, que aprender inglês é de certa forma como deixar de ser analfabeto, como desvendar olhos e enxergar tudo ao redor. No offense. Em grande parte não passa de retórica de primeira aula, discurso inicial, um jeito de exaltar os ânimos e impactar o moral daqueles que estão ainda céticos consigo mesmos. Ou que não têm idéia da significado de se aprender inglês.

Mas por toda a retórica pomposa, a afirmação não deixa de ser verdade. A pessoa que no mínimo lê em inglês fluentemente tem acesso a todo um universo de opções e possibilidades que o monolíngue às vezes nem sabe exisitirem. Veja-se, por exemplo, os adolescentes de hoje. Qualquer um deles navega a internet, ouve músicas, assiste a filmes e joga videogames e inglês, tudo sem necessariamente falá-lo com fluência. Suas práticas quotidianas requerem e ao mesmo desfrutam do idioma, o que para eles é absolutamente natural. Para adultos, os propósitos são mais específicos, e a falta do inglês pode significar prejuízos diretos, como a perda de uma oportunidade profissional ou incapacidade de acessar informações importantes, por estarem disponíveis numa língua que não conhecem. O falante de inglês se torna um componente ativo na engrenagem do mundo atual: realiza seus propósitos, interage em escala global e consegue satisfação pessoal. A língua se torna o trampolim para um desenvolvimento intelectual ainda maior.

E eu nessa história? Simples: ensino todo esse contingente ansioso a achar seu lugar no globo. Nada simples: me encontro frequentemente numa condição de auto-alienação. Por várias horas do dia, falo uma língua que não é a minha materna. Por causa da minha escolha acadêmica, quase 90% das minhas leituras são em inglês, não em português. Escrevo em inglês mais que em português, e o estilo da pimeira acaba interferindo decisivamente no da segunda. Quem fala duas línguas ou até mais sabe que o cérebro tem uma certa dificuldade pra armazenar e associar tanta coisa, fato cientificamente comprovado. Sou a prova disso: as palavras me fogem o tempo todo, sei-as em inglês melhor que em português. Esforço-me, mas é quase impossível resgatá-las na memória quando preciso. Também penso em inglês: as exclamações de raiva e alegria saem automaticamente traduzidas, não há Google que seja páreo para mim. Sem falar que cada língua traz embutida uma visão de mundo e uma lógica própria diferentes.

Tudo isso me frustra um pouco.

Por tudo isso e mais, acabo conhecendo a cultura angófona melhor que a própria brasileira! Leio mais literaturas em inglês que em português, ouço rock, jazz e blues e no entanto desconheço grande parte dos nossos gênios musicais; ainda estou pelejando para ler os grandes intérpretes da nação brasileira (Sérgio Buarque, Darcy Ribeiro e outros) mas posso me gabar de ter lido Thomas Hobbes e Charles Darwin no original. Li o Paraíso Perdido de Milton mas ainda não li o grande épico português Os Lusíadas.

Nada mal, mas podia ser melhor ainda, se eu tivesse tempo para exercer os dois lados.

Grande parte dessa imersão quase 24 horas é, sem dúvida, devido à internet, que facilita o acesso a absolutamente tudo. Graças a ela, não há mais barreiras geográficas para a informação. Concluo que o resultado disso para mim, e outros em condição semelhante, é um pouco alienante: no mundo globalizado somos cada vez mais indivíduos e menos membros de uma coletividade. Estar aqui agora, ser brasileiro e falante de português são uma mera questão de circunstância, isto é, algo facilmente mudável. De certa forma, estar em outro lugar falando outro idioma e imerso numa outra cultura não representam nenhuma mudança dramática num mundo que adotou uma língua em mais de 5 mil. E com todo esse mundo ao alcance do mouse, deixamos de ser apenas brasileiros, americanos, europeus, cristãos, muçulmanos etc. Podemos ser quase qualquer coisa, podemos nos identificar com o que bem quisermos.

As portas da percepção foram abertas, fellas. Eis a era do do it yourself, do self-made self. Eis o milagre da informação.

Isto é, se você está com o seu inglês em dia. Se não estiver, ainda dá tempo.

PS: e pra não dizerem que estou fazendo "merchã", não estou disponível para aulas.

2 comentários:

  1. esse seu texto me fez pensar na teoria da Globalização/fragmentação elaborada pelo milton Santos. ao mesmo tempo que a globalização demole as fronteiras nacionais entre as nações,sentimos que nossos valores culturais são fragmentados por outros.Podemos nos sentir estrangeiros em nosso próprio país.

    Interessante. aliás, posso utilizar seu texto para minhas aulas de Globalização? ehehe

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  2. Então o Milton Santos elaborou essa idéia? Bom, eu não sabia, o que é mais uma prova do que digo acima. Uai, se servir, pode, sim (vou ter de dar uns retoques primeiro, rsrs).

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