domingo, 15 de novembro de 2009

O legado polêmico de Allan Poe

 
Oh! Lenore...
Este ano comemora-se o bicentenário de nascimento do escritor norte-americano que os franceses adoraram - sem entender! -, o bostoniano Edgar Allan Poe. Sua memória e obra estão sendo relembradas pelo mundo todo com congressos, leituras, reportagens e (provavelmente) re-edições. Dono de múltiplas facetas, Poe deixou sua marca, positiva e negativa, sempre controversa, em vários campos da literatura.

Podemos classificar Allan Poe, grosso modo, como um artesão incansável do ofício das letras, além de um intelecto privilegiado, capaz de sistematicamente abstrair e explorar os recônditos mais iluminados e escuros da mente humana. Ao mesmo tempo, porém, sua obsessão formalista e racional gera críticas quanto ao sucesso do que ele se propunha a fazer. Analisemos brevemente seus méritos e, se ele os tiver, desméritos.

Qual leitor, estudioso ou amador (por falta de melhor termo), nunca leu estórias como "O Gato Preto", "Os Assassinatos da Rua Morgue" e "O Escaravelho de Ouro"? Quem nunca gostou de terror, atmosferas góticas, paranóia e sangue? Poe está no top five dos clássicos populares devido a esse seu appeal temático. O que poucos sabem é que ele foi o inventor da estória de detetive. Sim, Poe criou o primeiro cara de hábitos esquisitos e inteligência assustadora que sai à caça de criminosos. Auguste Dupin é um parisiense pacato que num pulinho a um sebo encontra seu amigo/narrador, formando assim o modelo de dupla dinâmica indispensável em todas as séries do gênero. Dupin usa apenas seus neurônios pra desvendar os mistérios: raciocina sobre os fatos, põe-se na mente do inimigo pra saber seu próximo passo e chega às respostas. O modelo foi usado posteriormente em inúmeras duplas de detetives, como Sherlock Holmes e Hércule Poirot, só pra ficar com o mais famosos. Uma falha apontada nas Dupin stories é que ele às vezes sabe mais do que nós e assim não ficamos no mesmo terreno. Numa boa estória de detetive, leitor e herói têm de dispor das mesmas informações, pra que não sobre dúvida de que eles são bem mais fodas que nós, pobres diabos.

O pioneirismo de Poe nesse gênero de estórias é facilmente explicável por sua fascinação pelo racional, pelo lógico, pela preocupação com a construção ultra-meticulosa das tramas. Para ele, toda narrativa devia ser escrita do fim pro começo, ou seja, deve-se primeiro pensar no efeito causado pela resolução, como a surpresa etc., e daí trabalhar detalhe por detalhe pra que tudo se encaixe e culmine naquele final surpreendente. Na poesia, Poe acreditava numa espécie de reino platônico da beleza, um plano superior que o poeta tenta acessar e traduzir em poesia. O poema precisa elaborar este sentimento, fazer-se instrumento da beleza pura. Na prática, porém, nem sempre funcionava...

Um conto que ilustra as concepções poenianas com muito sucesso é o famoso "O Barril de Amontillado," amplamente aclamado pela crítica como um dos melhores. Esta trama de vingança gira em torno da frase nemo me impune lacessit, presente no brasão da família do vingador Montressor, que quer dizer "ninguém me fere impunemente." Com excelente uso de ironia dramática, o personagem acaba por fazer jus a seu mote e suas intenções, levando a cabo a vingança de modo notável e imperceptível.

Outro conto que não funciona tão bem é "O Coração Delator." O fio condutor deste é a frase "Nunca antes daquela noite eu sentira a extensão de meus próprios poderes, de minha sagacidade." O protagonista deste conto deseja matar um velho com quem divide morada porque o olho de abutre dele não para a nenhum momento de fitá-lo acusadoramente, levando este já louco vizinho à insanidade total, daí a ironia de seu comentário acima. O assassino acredita ter os sentidos super-sensíveis, o que o faz ouvir o coração do velho a todo momento. Após matar, esquartejar e esconder o corpo do velho embaixo do assoalho de seu quarto, o narrador/protagonista (na falta de um nome próprio) recebe a visita dos cops, quero dizer, dos home, quero dizer, da polícia, que ouvira gritos e vasculha a casa a procura de algo errado. O protagonista, nervoso mas pretensioso, os leva ao seu aposento e se senta em cima do cadáver, mas ali começa a ouvir o coração do morto bater, literalmente, e, enlouquecido, se entrega num ataque de paranóia. Aqui, em minha modesta opinião, a idéia dos sentidos superaguçados me pareceu exagerada e sem sustentação na trama, pois só serve para o cara ouvir algo que não acontecia de fato e acabar pirando de vez. Faz algum sentido, pois ele já era louco e no fim faz jus à proposição citada acima, mas mesmo assim é um recurso forçado, que não tem liga com o resto dos acontecimentos. Percebe-se isso ao se ler o conto, fica claro que Poe precisava de alguma coisa que ajudasse a culminar no final que tinha em mente e não conseguiu pensar em algo melhor. Enfim, não se acerta sempre. 


 Tell-tale Heart, de Henry Clarke
Apesar de muita teoria, a poesia de Poe é universalmente considerada péssima. Recentemente, um expert dos EUA afirmou num congresso em BH que, dos 50-e-poucos poemas que Poe escreveu, salvam-se uns 5. Alguns acham que nem isso. Se você gosta do famoso "O Corvo," pode continuar gostando, não tem problema, mas saiba que em inglês ele é considerado bem medíocre por seu ritmo infantilóide. Outros, como "Os Sinos," só podem ter sido concebidos em momentos de embriaguês absoluta e não com a frieza do mestre. Melhor pensar que foi.

Espero ter conseguido demonstrar como o legado de Poe é controverso. Entre outras considerações que se podem fazer hoje, uma delas é que a teoria poética poeniana é bastante ingênua, pois de certa forma implica a ultrapassada idéia que ler poesia é tentar entender o que o poeta quis dizer, já que ele expressa um vislumbre da beleza superior. Por outro lado, sua influência sobre outros escritores tem sido forte. Poe arrancou elogios de Freud e Jung, entre outros, por suas explorações da mente, e também pregava que escrever é um exercício meticuloso, ao contrário dos românticos de sua época, que passavam a idéia de que eram como profetas, porta-vozes de Deus.

Abaixo vão alguns links pra ler Poe em português. Leia, divirta-se (?) e depois tire suas próprias conclusões.


http://www.releituras.com/eapoe_coracao.asp


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