sábado, 7 de novembro de 2009

Shakespeare, precursor dos estudos culturais?

William Shakespeare é, por assim dizer, o segundo pilar da literatura ocidental, o primeiro sendo Homero. Pilares um tanto quanto chacoalhadiços, vale a pena mencionar, já que questiona-se até mesmo se realmente existiram. Muitos afirmam que jamais houve um Homero, pelo menos não como o autor do épico grego; se existiu, teria sido apenas o responsável por coletar as partes do mito fundador da Hélade, que na época estavam na boca do povo, e reuni-los num texto definitivo. Há quem afirme que a Ilíada e a Odisséia foram obras de mais de uma mão e que isso é visível no estilo flutuante ao longo das centenas de versos. No caso do bardo de Stratford, há duas vertentes principais: os Stratfordianos, que não duvidam que o dramaturgo tenha existido e escrito sua grandiosa obra; e os Oxfordianos, que atribuem a obra shakespeareana ao também poeta Edward de Vere, 17o conde de Oxford. Há ainda os que creem que Francis Bacon seja o gênio por trás dos versos insuperáveis de "Will da lança."

Hoje, Shakespeare movimenta uma indústria acadêmico-cultural gigantesca, que o exporta como próprio sinônimo da anglicidade, assim como os franceses exportam filmes sobre como é bom ser francês e como Paris é maravilhosa. O homem é a epítome das belas-letras: é tão doloroso para qualquer escritor viver sob sua sombra que muitos o negam veementemente, o que deve lhes dar uma sensação necessária de alívio e auto-estima. Alguém assim é um prato transbordando para o desconstrucionismo dos tempos contemporâneos, incluindo aí o feminismo, o pós-colonialismo e outros -ismos dos estudos culturais, pros quais qualquer figura autoritária, opressora e representante da sociedade patriarcal deve ser destruída.

Acontece, porém, que Shakespeare strikes back do alto de sua torre de marfim. As mesmas questões que hoje interessam aos estudiosos das humanas - em suas torres de marfim - aparecem aqui, ali e acolá em Shakespeare, e sua obra já é há muito estudada por um viés pós-colonial e feminista. Há no mínimo duas peças em que essas questões são problematizadas de forma notável, O Mercador de Veneza e A Tempestade. Ousarei falar da primeira.

Em O Mercador, um judeu agiota empresta dinheiro ao seu pior inimigo, o respeitado comerciante Antonio, pra que este ajude seu amigo (colorido) Bassanio a cortejar a bela ricaça Pórcia. Não diferente da maioria cristã da cidade, Antonio exerce seu preconceito por judeus caluniando e cospindo na cara de Shylock, cuja profissão de usura é endemoniada pela sociedade católica. Assim, o judeu vê no empréstimo a chance de vingar-se pelas injúrias que recebe. A pena caso Antonio não honre o compromisso é meio quilo de carne do seu próprio peito (!). Se você acha isso absurdo, é porque é mesmo, mas na hora Antonio não tinha a quem mais recorrer e ele chega a crer, do alto de sua condescendência, que Shylock está ficando generoso porque "não vai cobrar juros." Mas o azar de Antonio é macrométrico, pois sua fortuna perde no mar e ele se vê sem "as prata" pra livrar seu rabo do maligno judeu. Enquanto Shylock afia seu facão com alegria incontida, a já noiva do mancebo Bassanio aparece no julgamento disfarçada de jovem magistrado, sem que ninguém na praça o perceba, intercede em favor de Antonio, usando uma brecha na lei  pra incriminar Shylock, que de quebra tem sua fortuna confiscada e é forçado a converter-se católico. No fim, como em todas as comédias, tudo dá certo, acontecem três casamentos, todos vão pra cama, e não é que a notícia do naufrágio dos navios mecantes de Antonio não era só um boato?

Espero ter resumido a trama da peça bem o bastate pra poder explicar, então, como Shakespeare retrata o papel das minorias. Primeiro, uma minoria étnica e diaspórica, representada em Shylock, buscando um lugarzinho ao sol, sendo esmagada e feita propriedade do estado cristão. A filha de Shylock foge, rouba parte da grana do pai como "lição de moral" e casa-se com um cristão, entregando-se de pernas abertas à nova religião. Segundo, uma minoria de gênero representada pela sagaz Pórcia, que mostra como a mulher inteligente pode contornar o poder patriarcal da sociedade subvertendo o gênero através das aparências. Ela não só salva Antonio como também entrega a grana do judeu de bandeja para a cidade. Em outras palavras, ela guarda todos os marmanjos no bolso ao mostrar que entende a lei deles melhor que eles mesmos. Ao final, na trama paralela dos anéis, Pórcia dá outra nos homens provando que são elas quem têm total controle sobre eles e os assuntos da casa, da família e da vida amorosa. Ou seja, quem decide se o cara vai ou não ser um corno são elas.

A preocupação polítca tão contemporânea na obra de Shakespeare não é coincidência ou fruto de seu gênio. Afinal de contas, algumas dessas questões eram da ordem do dia no fim do séc. XVI, quando os países europeus buscavam firmar-se como nações, a igreja católica buscava manter seu poder na Europa e expandi-lo ao Novo Mundo e Ásia, e os judeus eram encurralados e forçados a converter-se, nem que a força do pau-de-arara. A questão feminista, essa eu não sei a quantas ia 500 anos atrás, imagino que ainda nem engatinhava. Mas pras mulheres o sentimento sempre deve ter existido

De prato cheio pra se descer a lenha, Will vira prato cheio se nadar de braçada. É isso que faz dele mais do que leitura obrigatória nas aulas de Elementary School ou no repertório dos escritores? Talvez, mas o que importa é comparar o que obras como O Mercador e outras exibem em comum com as atuais, assim como a reação das audiências elizabethanas com a nossa diante do bufão cômico Shylock. Duvido que hoje alguém não se compadeça com a miséria desse judeu, mas o espectador daqueles tempos o teria visto como o próprio diabo, um estereótipo exagerado de sujeito mal e ganancioso, que prefere o dinheiro à filha. Shakespeare parece se aproveitar dessa visão raza para por na boca de Shylock as falas mais eloquentes e tocantes da peça. Qual deve ter sido a surpresa geral no Globe Theatre ao ouvirem raciocínios tão afiados em versos da mais elevada beleza! Bloody Jew!

Aí está, pra mim, por que ler Shakespeare.

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